sexta-feira, fevereiro 29, 2008

O poder do professor e o totalitarismo do modelo de gestão

A convite da minha colega Isabel Cluny, a professora Graça Fernandes foi convidada pelo departamento da minha escola para nos ir falar sobre o processo de avaliação dos professores e sobre o novo decreto de Gestão para as escolas. Entrou, serena, elegante, e disponibilizou-se a partilhar connosco, com inteligência, humor e distinção, a sua experiência de bem mais de três décadas em matéria de avaliação de professores, no decurso de uma vida profissional muito longa como docente e como defensora dos direitos de formação e de avaliação dos professores. Todos os interessados neste processo a deviam poder ouvir.

Começou por dizer-nos que na sua longa vida profissional já tinha assistido a muitas reformas do sistema e que hoje pode dizer com convicção acerca de mais esta:"Nada disto será como se pensa hoje", alertando-nos para a necessidade que há em evocarmos os argumentos certos para não atacarmos os méritos da reforma, mas sim todas as hipóteses que a reforma permita que desvirtuem o papel social único de um professor num espaço sala de aula. Deu como exemplo a reforma que permitiu há mais de uma década ligar a promoção da carreira com a obrigatoriedade de formação contínua para os professores. Ao princípio os professores moveram-se contra a reforma, mas ao invés de atacarem a ligação da carreira ao número de créditos, o que seria mais compreensível, atacaram a ideia de formação, o que obviamente não era o mais sensato. Instituído o sistema de avaliação e progressão na carreira ligado à formação, a subversão chegou com a possibilidade de cada um se aplicar na formação que muito bem entendesse.
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Hoje, o erro será criticarmos a avaliação dos professores e não, de forma declarada, o ataque por parte deste ministério à gestão democrática das escolas que funcionem bem, que têm lideranças claras e funcionais, que correspondem com um excelente trabalho às exigências.
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Esta é a nossa luta: separar a questão da avaliação, que ninguém nega ser importante (ainda que se deva discutir prazos de aplicação e conceitos), da questão da gestão de escolas. Ao mesmo tempo exigir o abandono de quotas, pois se um professor é avaliado com a nota que lhe permita subir de escalão, não deve ainda depois disso ser sujeito a ter que esperar que alguém morra. O mérito deve ser recompensado imediatamente e não de forma diferida que pode introduzir perversões no sistema de avaliação.
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Passou-se em seguida a analisar as fragilidades do processo em curso: 1. O tempo de execução imposto pelo ministério que não lhe deixa a ele, nem às escolas, o tempo necessário para testar todos os documentos, junto de professores ou escolas seleccionadas, para poderem proceder às correcções.
Isabel Cluny referiu o caso de um encontro entre professores e o secretário de estado, Jorge Pedreira, que numa reunião de esclarecimento sobre o concurso para professor titular ficou a saber, em resultado de uma iniciativa da FenProf que pediu a todos os professores presentes na reunião que preenchessem as fichas com os requisitos e ponderações exigidos pelo ministério para testar o documento, que nenhum dos presentes estava em condições de satisfazer aqueles requisitos e por isso de chegar a professor titular. E isso porquê? O modelo tinha sido lançado sem ser testado por quem quer que fosse;
2. O modelo fala de avaliação por dois anos, mas a ser iniciada em Março deste ano isso corresponderá apenas a um ano e meio de serviço e não a dois anos;
3. Os professores contratados, que mudam todos os anos de escola, vão ser avaliados por duas equipas diferentes para o mesmo trabalho? E os contratados que leccionam em duas escolas diferentes no mesmo ano para completarem horário, vão ser avaliados nas duas escolas? A nada disto responde o decreto;
4. Como é que os avaliadores podem avaliar os seus pares se não têm formação nessa área, nem têm uma rede de suporte científico ou metodológica por detrás, visto que não há um conselho coordenador/científico do processo, nem apoio de metodólogos, que sejam todos eles escolhidos para os cargos através de concursos públicos?
5. Tendo o Ministério enviado para todas as escolas um modelo de ficha de avaliação, não estabeleceu contudo o peso para cada item. Se eles não cumprem os prazos, porque o exigem aos outros?;
6. Os professores não podem permitir a nenhuma equipa de avaliação que tenha veleidades em afirmar-se como supervisora. Fazer uma avaliação de desempenho, não é, nem se deve deixar que seja, uma supervisão, devendo cada escola criar um código deontológico para o exercício desta função;
7. Os professores devem exigir aos avaliadores que testem as suas fichas de avaliação em si próprios antes de os adoptarem como documento de escola;
8. Que a observação das aulas deve incidir sobre conceitos de objectivos e competências, bem definidos, e não sobre a discussão de conteúdos para os quais os avaliadores não têm legitimidade científica;
9. A observação das aulas deve ser feita tendo sempre uma reunião prévia de discussão do plano de aula, não podendo o avaliador exigir nada mais do que aquilo que foi discutido e acordado com o avaliado, e deve ser combinada uma calendarização para a observação;
10. Esta avaliação deverá ter como objectivo único perceber o que o professor consegue fazer no tempo lectivo e no quadro do que se propôs inicialmente realizar na aula;
11. Deve ser discutido em conjunto o que se entende por empenho do professor no sucesso de cada aluno, que de modo algum pode estar associado à classificação obtida. Muitas vezes o sucesso real de um professor junto de um aluno está em conseguir que ele venha à escola e assista a uma aula, ainda que venha a obter classificação negativa, ou ainda conseguir manter o mais quieto e calado que é possível um aluno que tenha por objectivo sabotar o trabalho do professor e tudo faça para que ele não lhe ensine nada;
12. O avaliador deverá ter sempre presente que os professores do secundário têm, maioritariamente, turmas com muito menos conflitos e problemas disciplinares que os do básico e terceiro ciclo, o que provoca a necessidade de adequar objectivos;
13. A observação de aula deve consistir num registo de ocorrências, numa comparação de objectivos e com um espaço para as inferências, que devem ser comunicadas no fim da aula ao avaliado;
14. Os professores devem estudar cada questão da legislação com atenção;
15. O professor deve passar a organizar num dossier todos os seus documentos para se proteger de uma má avaliação;
16. Há que aprender a fazer de forma diferente aquilo que é conveniente.
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A literatura recomendada foi: Mª Emília Brederode, Os Aprendizes de Pigmalião (Lisboa: IED, 2ª ed., 1991)
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Por fim conclui eu mesma: reformas feitas contra as pessoas, ou sem a sua adesão racional ou emocional, merecem o destino da subversão.
Ou, dito de outra forma, o poder do professor é esse mesmo, o de combinar a sua preparação a uma boa planificação e, com liberdade, permitir que os seus alunos aprendam, evoluam e se desenvolvam intelectual e socialmente, sem se deixar submeter à imposição burocrática e empobrecedora da organização como princípio de legitimação da sua função. Organizar uma relação pedagógica não é o mesmo que organizar uma empresa de enlatados.
Cabe-nos dizer que não, em nome do interesse da educação pública e contra as ideias bem estruturadas em papel mas que nenhum governante aplica a si próprio, nem como critério para a sua própria auto-avaliação. E apoiar os sindicatos nas suas recentes iniciativas.
Eu também vou estar presente na marcha do dia 8 de Março.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Uma nova ordem de reprodução cultural?

Agradeço desde já a referência que me foi feita no blog A Educação do meu Umbigo.


Sendo a nossa ministra da Educação especialista em sociologia das organizações traz essa marca formativa para as decisões que toma ou que corrobora com a sua assinatura. Há pois que perceber quais são os modelos explicativos da realidade em que a governante se ancora para estruturar os projectos que vêm para as Escolas da 5 de Outubro, isto se quisermos ter argumentos que a contrariem.

Num livro de introdução à Sociologia como é o de Anthony Guiddens ( e eu relembro que este autor foi assessor de Tony Blair e um conceituado mestre de pensamento, um ideólogo, da política de centro-esquerda, logo é uma referência teórica incontornável para a nossa política de centro-esquerda e, acentuadamente, para este governo), ele dá-nos conta do que se passou com a política da educação na Grã-Bretanha, contextualizando-a com dados provenientes de outras parte do mundo.

E o que nos diz ele? Que a educação foi e continua a ser um campo de luta política. O que quer dizer, se há luta, que existem duas soluções conflituosas entre si para o exercício dessa actividade.
Se no início a discussão se centrava sobre a questão de saber se a escola devia ser inclusiva ou selectiva, se devia promover as igualdades sociais ou poder utilizar os seus poderes para seleccionar formalmente os alunos segundo os seus recursos intelectuais e comportamentais, hoje discute-se a bondade da iniciativa privada versus iniciativa pública na gestão da escolas.
A divisão teórica materializa-se na divisão política correspondente, e que em Inglaterra se substancia em Trabalhistas/Conservadores ( a Sr.ª Thatcher introduziu a reforma a favor do sistema selectivo). Thatcher, na prática, instituiu a ideia de que os pais é que deviam poder escolher as escolas dos seus filhos e que estas podiam seleccionar os seus alunos.
Os resultados foram os seguintes: os pais de meios mais privilegiados sabiam como fazer inscrever os seus filhos nas escolas desejadas, e um número cada vez maior de crianças via ser-lhes negada a entrada na escola da sua primeira opção. A oportunidade igual de escolha induzida pela escola caia por terra como modelo social.
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Quando Tony Blair toma o governo da Grã-Bretanha compromete-se a apoiar as escolas que mantinham como modelo de gestão a inclusão social, mas não alterou radicalmente a reforma da conservadora Thatcher, permitindo o método de selecção que certas escolas já tinham, sustentando a ideia de que a diversidade educativa se baseia na ideia de diferenciação de capacidades. Ao mesmo tempo provoca iniciativas que estivessem relacionadas com o desempenho das escolas, não pelo reforço do investimento económico mas pela reforma dos recursos aplicados à educação. Assim criaram o programa "Começar de Novo", reestruturando totalmente o corpo dirigente e docente das escolas que não tinham sucesso, obrigando-os a um ratio de 15% de aprovação dos seus alunos no exame nacional no início da reforma e 25% a partir de 2006, promovendo estratégias antiabsentistas dos alunos, fazendo encaminhar para as escolas "orientadores escolares" que se concentravam nas crianças e adolescentes em risco de exclusão social, libertando os professores desse papel e deixando-os entregues à preparação das suas aulas, e em terceiro lugar começou a diferenciar os ordenados dos docentes com base no desempenho dos mesmos, quantificado pelo sucesso dos seus alunos nos exames. Ao mesmo tempo Tony Blair apoiava a gestão privada das escolas.
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O que se sabe hoje: que as críticas sobre a distinção da remuneração de acordo com os desempenhos é injusta para com todos aqueles professores que leccionam em escolas de meios mais desfavorecidos, e que o sistema privado de educação em todo o mundo não satisfaz com sucesso, apesar dos recursos disponíveis, os objectivos da educação, a saber: promover a socialização, potenciar a oferta de iguais oportunidades, criar uma força de trabalho eficaz e preparar cidadãos informados e participativos.
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Em qualquer sistema educativo os níveis de literacia são oscilantes, e não dão garantias de sucesso per si, dependem persistentemente de cada escola envolvida. Esta conclusão fez com que os governos americanos e do Reino Unido procurem implementar novas formas de gestão escolar, privada, ainda que recorrendo a financiamento público, em escolas que revelem baixo desempenho escolar. O que quer dizer que estão a caminhar para a "privatização da educação", como o afirmam muitos observadores.
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Os críticos da privatização demonstram que a gestão privada das escolas "não passa de uma "reconfiguração" das melhores práticas utilizadas nas escolas públicas" e que visa o lucro e não as reformas do ensino no sentido de eliminar desigualdades.
Sendo o mercado das certificações profissionais e o da indústria informática (por associação da ideia de sucesso escolar com a posse de tecnologia informática: software educativo e hardware onde correr o programa) tão apetecível, pululam "empresários da educação" por tudo quanto é sítio na América.
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A política da educação está em hoje em luta entre os que defendem a educação como um campo passível de dar lucro e de ser gerido como uma organização privada, e aqueles que defendem que a escola deve ser pública e estar ligada ao combate à pobreza e exclusão social, prestando melhores serviços à sociedade.
Como diz Guiddens, a primazia do modelo de gestão privado está em ligação à primazia do modelo de sociedade mercado na nossa época. E adverte que a entrada no sistema far-se-á através dos empresários dos meios de produção audiovisual.
É que aqui, e a conclusão é minha, o caminho de uma nova ordem na educação, que cabia ao Estado manter até para salvaguardar a sua existência, e a sua integridade como forma institucional de regular a ordem social, ficará entregue aos que têm interesses em proceder à vendas de ideias e de formas de estar que estejam relacionadas com os produtos que comercializam. Criam clientes nos bancos da escola para as suas presentes e futuras reproduções culturais. Mas talvez se atinja o sucesso.
E isto, para mim, é que é a ideia de um Estado falhado.
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Que os nossos governantes se lancem sem reflexão, e sem tempo de maturação na sociedade, para estas ideias e para estas reformas consecutivas na educação portuguesa, é que me desconsola. Se os resultados em outros países ainda hoje estão a ser apurados, se levaram décadas a adequar essas reformas à realidade, se procederem por fases e com uma aplicação local, vêm estes e resolvem impor um plano governamental totalitarista às escolas portuguesas.
Devem sentir-se verdadeiros Dr. Zandiga.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Instituto do protectorado

Ah, então o conceito que foi repescado para justificar a acção de reconhecimento do Kosovo pela comunidade internacional favorável à independência foi o do protectorado?
Confesso que já me tinha perguntado que doutrina iria justificar esta prática. E fiquei aqui a saber que foi esta.

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Repare-se no entanto nos riscos em que esta teoria (com origens no sistema colonial de protectorados nacionais, ainda que renovada pela ONU a partir da ideia de um protectorado internacional) pode fazer incorrer a comunidade internacional, e que o Professor Adriano Moreira apresenta: 1. "(...) o caso sirva de precedente dinamizador de movimentos largamente identificados, lembrados, e fortalecidos pela atenção que lhes será dispensada pela comunicação social.";
2. "Nas meditações portuguesas não vai deixar de ser incluído o caso de Cabinda, cujo movimento de autonomização e independência irá seguramente revalorizar o chamado protectorado em que se apoiara a soberania portuguesa, embora tivesse natureza colonial e por isso diferente dos protectorados internacionais.";
3. "Na própria Europa alargada não faltam fronteiras problemáticas, designadamente as fronteiras da Polónia e da Alemanha, sendo que a primeira foi tão frequentemente vítima de alterações forçadas do seu território que já foi chamada uma nação mal estacionada.";
4. "Embora o processo europeu tenha valorizado as regiões e transformado as fronteiras geográficas estaduais em apontamentos administrativos, e tendo actualmente um sério problema global de multiculturalismo populacional, neste caso tornou-se definitivo, por imposição dos intervenientes actores que foram a ONU, a União Europeia e os Estados Unidos, inviabilizar a proposta de reorganização interna feita pela Sérvia.";
5. "Talvez seja mais exacto admitir que, como é frequente, deu início a um complexo problema novo, que inclui a construção do novo Estado. Trata-se de uma região extremamente pobre, onde a segurança é escassa, a corrupção é preocupante, pelo que a estruturação não dispensa uma responsabilização interventiva de viabilização do novo Estado, incluindo financiamento, forças de segurança, ajuda técnica, pressupondo conseguir que albaneses e sérvios não desenvolvam um conflito interno, e que a Sérvia se contenha."

Muito interessante o artigo publicado no DN.

Adriano Moreira, Mais um risco

Os professores no Prós e Contras

Um amigo dizia-me que alguns professores o desiludiram ontem no debate com a ministra, porque enveredaram por explosões sentimentais em frente à governante ao invés de escolherem um discurso argumentativo e combativo dos valores por ela defendidos.
Só depois de terminar as minhas aulas pude acompanhar o debate, e por isso perdi quase toda a primeira parte. Eu respondi ao meu amigo que quando escolhemos indivíduos com pouca representação institucional, seja em que área for, que não tenham treino no papel social de negociadores ou intermediários institucionais, o que tende a acontecer é que as pessoas dizem o que sentem, misturando interesses gerais, racionalizáveis, com interesses pessoais psicológicos e emocionais. Não faz mal nenhum que as pessoas manifestem os seus sentimentos, que são comuns a muita gente, e que permitem de alguma forma a catarse, desde que saibamos que elas não estão a representar os professores como classe profissional, estão a representar um sentir que percepcionam como sendo o do conjunto de professores.

A conclusão é que entre os sindicatos onde os professores estão a deixar de se reconhecer, apesar do seu poder social que ainda lhes subsiste como parceiros de discussão e de mobilização mesmo se forçada, e as recentes e imaturas associações cívicas, os professores continuam pouco representados.
Os professores deviam ter pensado em levar alguém que do seu lado estivesse preparado não só para falar da sua experiência na escola, mas alguém que tivesse estudado os modelos que querem implementar em Portugal e apontar-lhe todas as falhas, apresentando outros modelos onde o papel do professor é mais relevante e mais respeitado, como forma de contraposição. Deviam ter levado os números do continuado facilitismo (que ofendeu muito a ministra e o famigerado encarregado de educação da CONFAP), e mostrado ao país essa verdade.
Assim ficou tudo baseado na casuística. Mas pelo menos deu para se perceber o mal-estar geral sentido nas escolas portuguesas. E se houve professores mal-educados, a tutela já o tinha sido antes e de forma recorrente: os modelos tendem a replicar-se.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

vertigem pela forma de vida totalitária

Ontem, quando interpunha mais um livro, outro livro, entre o meu cérebro e a biografia de Churchill que ando a ler há meses e que se tem arrastado, pensei: - Mas porque não acabo eu de ler a biografia? Já li volumes bem maiores com escritas e pensamentos bem mais difíceis, obras bem menos motivadores pela retribuição em deferido do prazer da sua leitura, o que se passa então?
Pus-me a enumerar as dificuldades: trabalhos que tenho para terminar, outros a que tenho que dar continuidade, os quais implicam todos muitas leituras em áreas divergentes; nas viagens é um livro pouco prático para se transportar e o facto de ter duas actividades profissionais concorrentes e que não me deixam muito tempo disponível para leituras que exijam uma longa actividade continuada. Mas... tudo isto é meia verdade. Para não dizer que são no seu conjunto uma justificação falsa. O que me parece, e me parece a sério e me inquietou muito, foi o facto de eu estar a ler com interesse mas também com alguma distracção a vida de um biografado político democrático.
Na verdade todos os biografados que eu tenho lido, da esfera da actividade política, da antiguidade aos nossos dias, foram grandes figuras centralizadoras do poder e mesmo totalitárias.
O que sinto como verdade, e digo-o com sentido desapontamento por mim, é que o fascínio das ideias e das acções impostas pelo terror me terão instigado a uma leitura mais célere do que as demandas de uma vida singular pelos caminhos sempre cheios de percalços eleitorais próprios de um Estado de direito, num sistema democrático do exercício do poder.
É como se seguir uma vida que respeitou os procedimentos de uma sociedade democrática, e que viveu a um nível mais prosaico a sua existência pública, lhe retirasse uma certa vertigem, ainda que por aversão, de seguir de forma ávida a leitura sobre a sua vida. O fascínio pela violência e pela arbitrariedade, mesmo se em sentida repulsa, a ganhar ao exemplo de uma vida de um candidato democrático.

Eu sei, é terrível.

A vertigem

Vejo que no meu país a polícia usa como critério para identificação de pessoas que se concentram em protesto contra as políticas públicas de forma espontânea, e por isso carecendo da autorização das reuniões em via pública, o facto de elas terem falado para a Comunicação Social. Vamos lá, se a polícia tinha o dever de identificar alguns dos presentes tinha que o fazer em relação àqueles que precisamente tinham prestado declarações aos meios de comunicação? Eu se fosse chefe da polícia, ou polícia mesmo, coibia-me totalmente de usar esse critério como forma de avaliação. Arranjava outro. Do género, todos os que tiverem camisolas cor-de-laranja, ou todos os que forem mais altos do que eu, ou que falarem de forma audível pelos demais ou ainda os que acenarem com um lenço na minha cara. Pronto, eram critérios também eles discutíveis, alguns deles estéticos, mas não ponham em causa propriamente os valores de uma sociedade democrática.

Se eu fosse chefe da polícia, ou uma polícia mesmo, destacada para o serviço em questão mas possuidora de uma matriz cívica democrática inabalável, jamais aceitaria cumprir a ordem do: o primeiro que prestar testemunho a um jornalista vai logo ter que ser identificado.

Então vai levantar-se a suspeita de que os transeuntes reunidos só são passíveis de serem suspeitos de uma ilegalidade se disserem o que pensam e o que fazem ali reunidos aos meios de comunicação? Corre-se este risco numa sociedade democrática? Então não há o pudor, já não digo do respeito pelos princípios, mas pelo menos da aparência do respeito pelos princípios?

Falam-me de autoridade do Estado, e eu vejo compressão pela máquina do Estado. Dizem-me que é toda uma nova dinâmica funcional/organizacional a que se está a dar rumo em Portugal e eu só vejo vacuidade crítica e reflexiva em alguns membros deste governo. Começaram todos com o discurso aprendido de cartilha, com certeza aprendido nas reuniões de ministros, só pode: temos que combater as corporações, os grupos profissionais que concentram muita mão-de-obra e que saem caros ao erário público, temos que reter as pessoas em patamares salariais que sejam estreitos e para isso podemos tudo, até atacar valores civilizacionais em nome de uma maior e mais efectiva organização/racionalização administrativa. E tudo se reduz a este intento.

É a vertigem da mudança pela mudança, e se pelo meio se atropelar regras invioláveis de uma sociedade respeitadora da liberdade de cada um... assim se faça, em nome tudo de boas razões que acabam por se legitimar a si próprias enquanto tais porque não admitem atempadamente o contraditório.
Enquanto isso os professores reúnem-se, pensam e agem pela dignificação do seu papel social. É um sinal de resistência à vertigem burocrática.

domingo, fevereiro 24, 2008

As palavras

"- Já vai sendo tempo, filho
e poderás sorrir-lhe como a uma
namorada antiga que nunca envelheceu.
Sorrir-lhe
(entendes o que eu digo?)
numa mistura de timidez e confiança,
porque
(entendes mesmo o que eu digo?)
te tornarás feliz e eterno. "


António Lobo Antunes, "Agora que já pouco te falta" in Visão

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

A aparência de realidade

Pensamos no que sabemos pensar. Geralmente pensamos sobre aquilo que estamos a viver, mas se quisermos filosofar podemos pensar sobre o que não estamos a ver ou a viver mas que conseguimos representar da realidade hipotética na nossa mente. Mas aí é outra história.
Poderemos também ter a tentação de dizer que as coisas mais importantes não vêm através do pensamento, são de antes da linguagem... como se o pudéssemos alguma vez avaliar sem ser por palavras. O indizível tem uma não existência comunitária. Não é bem o silêncio, é outra coisa. O silêncio pode existir como forma de comunicação. O indizível não, pois pela sua natureza é uma experiência individual, inobservável, melhor dizendo, incomunicável.
Quando não estamos a viver ou a ver o acontecimento sobre o qual estamos a pensar, como sabemos que ele de facto ocorreu, ou que é tal como alguém nos diz que está a ser?

Tudo isto por causa da realidade de cada um. As cheias de Lisboa não afectaram da mesma maneira todos os bairros, nem todos os habitantes desses bairros. A minha realidade não foi a de centenas de outros lisboetas na madrugada de dezanove. Para saber o que sentir e o que pensar sobre as ocorrências dependi dos testemunhos e das descrições e posteriores interpretações de outros. Posso ter partilhado interesse pelo assunto, mas não partilhei experiência.

Na comunidade não podemos partilhar experiências de forma totalitária. Felizmente, não em democracia. Cada um, cada família, cada grupo de humanos partilha um número limitado de realidades e espera, se houver coesão social, que as outras formas de vida lhe interessem e que esse interesse seja fecundado por relatos ou juízos razoáveis, verídicos ou verdadeiros.
A política pode ser uma actividade onde se produzem análises verdadeiras, ou pelo menos, fidedignas sobre os temas/acções por ela demandados. As pessoas não podem é dizer que governam sem política, porque a política pressuporia uma discussão muitas vezes pensada como enfraquecedora da actividade governativa, sendo esta entendida como meio de decisão e de execução do decidido por excelência, mas virem depois a utilizar as técnicas políticas do discursos semelhante à verdade, sendo que não se exigem a si próprios/as dizer verdade sempre que querem passar as suas mensagens político-governativas.

Eu não sei o que é distinguir, numa democracia representativa, uma questão de governo de uma questão política. A não ser que aceitemos que o governo não passa de um conjunto de técnicos superiores a processarem acções num sistema essencialmente tecnoburocrático. Então neste caso deixamos de eleger deputados e de lhes permitir estabelecer um governo, passamos a ser governados por funcionários públicos administrativos.

As reformas deste governo são políticas, porque mesmo que as reformas não passem de uma submissão à ideia de existência e implementação de técnicas de regulação do défice, e de manipulação de números na educação, na saúde ou no emprego, isto por si já é uma interpretação política da arte de governar.

Quando a essa forma, legítima, de governar se acrescenta um discurso político que faz da falsidade a criação de uma realidade desejada, eu penso que aí entramos numa roda-viva do vale tudo para manter uma vontade pouco legitimada.

Pelo facto de ser recorrente que os políticos digam uma coisa quando estão a exercer determinadas funções, ou quando se estão a candidatar, e digam uma coisa contraditória ao encontrarem-se noutras funções, não faz de si que isso seja aceitável, que seja racional ou sequer que seja inevitável em democracia que tal assim seja. Não há uma inevitabilidade democrática para a mentira dos que nos governam.
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A solução passará por intervenções constantes e directas de grupos de cidadãos. Não é que o poder deva descer à rua, é a ideia de que o poder nunca deve sair da rua, porque só ela o pode legitimar com a sua escolha eleitoral ou com a sua manifestação cívica em movimentos de intervenção pública. Que isto se faça sem revoluções, sem desordem, e com qualidade de participação, é algo que não discuto. Mas que se faça de modo a que se obrigue a transformar os esgares dos nossos governantes, quando confrontados com opiniões distintas das suas, em real atenção aos cidadãos, ou obrigue os discursos manipuladores dos nossos governantes a sujeitarem-se ao escrutínio público, aos factos.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

A avaliação dos professores

No blog Ramiro Marques faz-se um acompanhamento das políticas de educação deste país, vale a pena ficarmos todos a saber o que aí vem, não só para os professores, mas para a sociedade.

"(...) No início, fui um entusiasta da avaliação de desempenho dos professores pois considerava que manter o status quo era injusto para os professores mais dedicados e competentes. Nessa altura, eu encarava a avaliação dos professores como um factor de diferenciação que pudesse premiar os melhores e incentivar os menos competentes a melhorarem o seu desempenho. Fiz algumas reuniões de trabalho com a equipa técnica do ME e logo me apercebi de que a Ministra da Educação estava a engendrar um processo altamente burocrático, subjectivo, injusto e complexo de avaliação do desempenho que tinha como principal objectivo domesticar a classe e forçar a estagnação profissional de dois terços dos docentes. Ao fim de duas reuniões, abandonei o grupo de trabalho porque antecipava o desastre que estava a ser criado. Nas reuniões que eu tive com a equipa técnica do ME, defendi a criação de fichas simples, com itens objectivos, sem a obrigatoriedade da assistência a aulas, a não ser para os casos de professores com risco de terem um Irregular ou um Regular, e com um espaçamento de três anos entre cada avaliação. Hoje, passados três anos, considero que se perdeu uma oportunidade de ouro para criar uma avaliação de desempemho dos professores realmente objectiva, justa, simples e equilibrada. Em vez disso, criou-se um monstro que vai consumir milhões de horas de trabalho nas escolas e infernizar a vida de muitos professores, roubando-lhes a motivação e a energia para a relação pedagógica e a preparação das aulas."

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Acreditamos todos em si, senhor primeiro-ministro

"Ontem foi quase uma hora daquele tipo de propaganda calmante a que, dantes, se chamava conversa em família, onde o chefe da governação demonstrou, diante dos discursos do bastonário Marinho e do general Leandro, que é um excelente "public relations" para o homem massa da multidão solitária, dado que tem perfeito conhecimento dos "dossiers" da economia, da saúde e da educação, pois foi capaz de os reduzir a meia dúzia de linhas e de percentagens, assim confirmando como um bom político é o tal especialista em assuntos gerais que percebe de tudo um pouco, sem perceber nada de nada, entre furacões, casapias e apitos dourados. Quando a palavra pública se gasta pelo mau uso, ela pode correr o risco de se prostituir pelo abuso.

(...)Por mim, apenas confirmei, através de uma adequada análise de conteúdo, que nunca foram usadas palavras como civismo, democracia, participação, patriotismo ou Estado de Direito, quanto mais socialismo, cosmopolitismo ou europeísmo. Este "public relations" da abstracta governação podia ser propagandista de outra qualquer governança sem governo, de outro qualquer sistema geral de pilotagem automática, ao serviço da melhoria de uma qualquer balança teconológica, onde se confirmasse que o calçado e o têxtil melhoraram e que aumentámos para 35% os cursos profissionalizantes na educação, tendo mais alunos com menos dinheiro, dado que ainda podemos crescer 2,5% ao ano, conforme consta das cábulas postas em bloco, com marcador grosso... "

Post de Adelino Maltez publicado no blog Sobre o tempo que passa.


Sublinho as palavras de Maltez e penso ainda: e depois não há nenhum jornalista que se dê ao trabalho de ir ver a que correspondem na prática os cursos propagandeados, e qual é efectivamente o seu valor científico, tecnológico, educacional ou profissional para a sociedade tendo em conta a sua (pouca) consistência. Também ninguém pergunta pela taxa de abandono desses cursos. Pois, embalemo-nos com a conversa dos mesmos meios e mais alunos e com mais qualidade e acreditemos no primeiro-ministro.

O domínio pelo meio de transmitir representações sociais

Um amigo envia-me esta ligação ao blogue Ensinar na Escola que, por sua vez, cita um artigo publicado em 2006 por Paulo Rangel, no jornal Público: "Ministra da Educação ou a construção de um mito".
Atempadamente já a Associação Portuguesa de Famílias Numerosas o tinha feito.
Três considerações: 1. A incapacidade dos professores de fazerem passar a sua mensagem ao nível da sua representação mediática, sindical, política ou social, o que os leva a recuperar artigos escritos há já alguns anos, e sem que o tempo decorrido tivesse aportado algo de novo, ou dado uma solução ao problema da educação que já em 2006 o deputado Rangel percebia serem graves; 2. A Associação de Famílias Numerosas consegue ter um alcance crítico que a famigerada Confederação Nacional das Associações de Pais não tem, visto que esta está sub representada por pessoas sem vontade de discutir ou apresentar ideias que tenham a ver com a mudança de paradigma na educação (continuam a privilegiar a ideia de facilitismo e de escola como meio de ocupação dos tempos dos filhos); 3. A invisibilidade dos problemas reais da educação ("Os dois principais problemas da escola portuguesa são a falta de exigência e a falta de autoridade") deste país sob o manto da propaganda e do recurso a técnicas negociais que ludibriam os parceiros.
Os docentes sentem-se de tal modo sem representação sindical ou política que no próximo dia 23 de Fevereiro promove-se uma reunião onde os professores passam a declarar a defesa dos interesses da educação e deles como legítimos mediadores: Professores em Luta

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

...colhe tempestades, mestre?

A caminho do Convento de Cristo em Tomar, ontem. Chuva intensa. Na rádio a incessante conversa sobre a unilateral declaração de independência do Kosovo.

Silêncio ou pouca explicação por parte do governo português sobre o acontecimento, que nestas coisas deve estar a aguardar para ver o que faz a maioria dos países no mundo. A literatura oficial fala em secessão e a prática habitual internacional é ser-se contra este tipo de veleidades, pois há muitos países que temem o efeito bola de neve das independências territoriais e perdas de integridade territorial. É o caso da Espanha, por exemplo, que já disse que não aprova a independência do Kosovo, e o caso da Rússia, também. Estes países não têm nada a ganhar com a prática de verem o que consideram uma secessão transformar-se num reconhecido território independente. Estes países têm os seus problemas territoriais internos e estas declarações de independência podem ajudar a manter vivos os desejos dos povos que se encontram eles próprios em luta pela sua independência.


A literatura também fala em autodeterminismo, veja-se o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; art. 1º “Todos os povos têm direito a autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente o seu estatuto político e asseguram livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural”.

Eu tenho dificuldade em tomar partido. Parece-me que o Kosovo não tem maturidade institucional para declarar a sua independência e que vai buscar na UE uma escapatória ou um suporte para a sua fragilidade como Estado, pondo-se à sombra da Comunidade. Perturba-me que Estados fracos advoguem a sua independência, pela incongruência desse estatuto que continua a ser de dependente. Por outro lado, também sei que se não fosse agora, a manutenção do território como parte da Sérvia tornar-se-ia pouco a pouco como um dado político cultural mais consolidado, e tornar-se-ia mais difícil fazer com que a comunidade internacional reconhecesse no futuro essa independência.

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Tu és feita de açúcar?! – Perguntava-me um alemão quando eu me lamuriava por estar a chover logo no primeiro dia em que com um grupo de amigos decidira atravessar uma floresta e subir a uma montanha na Baviera, a pé. Claro que não sou. A partir desse dia aprendi a não ter lamúrias. Bom, bom, aprendi a não me lamuriar muito, sempre que há compromissos de passeios e está a chover.

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A caminho do Convento de Cristo para ver a peça “O nome da Rosa” levada à cena pelo grupo Fatias de Cá. Íamos presos na sugestão do livro e do espaço. Uns amigos já nos tinham falado há mais do ano da existência desta companhia, mas foi J.Moroso, que escreveu sobre o assunto no jornal Sol, quem deu o empurrão para a marcação de reservas.

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Grupo de umas cinquenta pessoas preparadas para o espectáculo. O espaço é sublime, como já se sabe de outras visitas. E o texto é inquestionavelmente uma obra de arte superior. Aguardávamos com expectativa para ver o que ali nos seria oferecido. Passam dois monges em silêncio por nós, no claustro onde aguardámos, seguem e ficam a olhar por uma janela, lá fora monges descem em fila a escadaria exterior do convento entoando cantos. O edifício está impregnado de água e cintilia à luz prateada que no fim de tarde nos permite vislumbrar como se num sonho a sua sóbria majestade de linhas. Senhoras e senhores, o teatro começou.

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Depois são cinco horas de fruição sensorial e intelectual.
"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o verbo era Deus."

Caminhemos com o erudito, inteligente e fascinante Frei Guilherme. Façamos de jovem Adso, sigamos o mestre.

A actriz que representa frei Guilherme faz-nos estranhar ao princípio. Não pelo género mas pela idade. Comenta alguém nas minhas costas: "Mas Frei Guilherme não era uma mulher!". Comento eu para o meu lado:"Frei Guilherme era muito mais velho...". Mas depois de estranhar, aceita-se. E não volto a perturbar-me com a personagem durante todo o acto teatral, que foi sendo construída de forma serena, com cuidado e à procura da maturidade que Umberto Eco lhe dera. Entra-se no mundo da imitação que Aristóteles tão bem definira e estamos prontos para a catarse. Venham os outros actores.

Os níveis de interpretação são diferentes, todos os actores são amadores, no sentido em que nenhum está ali a ganhar dinheiro. E estando nós sempre colados aos seus corpos e atentos às mínimas falas, já que o espaço e o modo não os protege do nosso olhar, e estendendo-se a peça por tantas horas, dificilmente poderíamos exigir constantemente um nível superior na arte de representar.

Eu fiquei fascinada particularmente com Frei Guilherme e com Bernardo Gui, também com o despenseiro e com o velho Alinardo. Mas todos contribuíram para a circunstância do ritual dramatúrgico da passagem da palavra. Mesmo os guardas que nos acompanham pelos corredores e pelas imensas divisões do convento ganham o seu papel na trama teatral. A paixão de um deles pelo acto era visível no brilho e na entrega com que acompanhava os passos dos actores e os nossos.

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De tempos a tempos vamos ao refeitório. Seis vezes seremos convidados a lá ir. Porque sete são os dias em que decorre a história. A certa altura perdemos a conta. Haverá um momento em que achamos que não vamos conseguir pôr na boca mais do que quer que seja. Mas o cuidado com a cenografia da alimentação, a atenção dada à confecção e a selecção dos produtos dos pratos apresentados, a entrega ao momento, tudo nos empurra para a confraternização. Fica-se a saber segredos enquanto se partilham copos de vinho quente com especiarias. Um certo jornalista foi tomado também ele da vontade de criação e pediu para se juntar ao grupo e comungar daquela cerimónia do outro lado do auditório. Há autores e líderes de opinião consagrados e a ganhar algum rio de dinheiro que se envolvem em pouco éticas e nada nobres acções contra a companhia, impedindo-a de representarem o seu texto. Há actores muito cultos que têm por única vontade fazer com que obras civilizacionais sejam ouvidas e apreciadas pelo maior número possível de vezes.

No fim, na última refeição, temos uma grata surpresa. Um sobressalto de realidade versus ficção. E todos se igualam, actores entre si, público, pessoas que circulam. Não há ali egos a reclamarem a assinatura por baixo da sua existência.

Brindemos a Baco e às transfigurações. O acto é de entrega à imitação de acção.
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E brindemos também a Apolo, pois a discussão teológica que opõe Franciscanos e os seus críticos é uma discussão de elevada racionalidade argumentativa e pode ser trazida aos nossos dias sob a forma da pergunta:"Capitalismo ou democracia?" Perdoem-me os teólogos. Na verdade discute-se então, a cena passa-se no século XIV, se seria ou não heresia a proposição a favor da pobreza de Cristo que os Franciscanos pregavam. O Capítulo de Perusia, documento onde se delineia uma doutrina sobre renúncia à propriedade de todas as coisas como regra de santidade, está em discussão. Ubertino de Casale, o teórico sobre a questão da pobreza, defende os princípios que regem a Ordem dos Franciscanos, e opõem-se-lhe na doutrina os Dominicanos, com o apoio da corte eclesiástica de Avinhão.

Outra discussão paralela é a que trava o monge Jorge, o guardião da rica biblioteca, contra Frei Guilherme. Os livros e as bibliotecas servem para guardar o saber ou para investigar o saber? Devem destruir-se os livros que alguém considera ímpios ou devem ler-se todos os livros para se decidir livremente acerca dos seus malefícios ou benefícios?
Questão sempre actual, em qualquer sociedade, e que está bem patenteada no que se chama o dilema de Omar: “Se todos os livros são conformes ao Alcorão, são inúteis e têm de ser destruídos; se contradizem o livro sagrado, são perigosos e também têm de o ser”.
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A biblioteca do Mosteiro vai arder. A Abadia sucumbirá. As discussões académicas, os diferendos que opõem aquele conjunto de religiosos e que se parecem tanto com as pequenas intrigas da nossa academia universitária, onde conseguimos vislumbrar muitos Ubertinos, Remígios, Berengários, Salvadores e abades, também terminarão.
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Guilherme ensina Adso a olhar os signos, a não duvidar da sua verdade.
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"Ousei, pela primeira e última vez na minha vida, uma conclusão teológica:
(...) Afirmar a absoluta omnipotência de Deus e a sua absoluta disponibilidade a respeito das suas próprias escolhas não equivale a demonstrar que Deus não existe?"
Guilherme olhou para mim sem que qualquer sentimento transparecesse dos traços do seu rosto, e disse:
- Como poderia um sábio continuar a comunicar o seu saber se respondesse sim à tua pergunta?"

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A adaptação do texto esteve sempre muito bem feita. Até mesmo na substituição destas palavra finais por outras menos eruditas mas igualmente filosóficas acerca da universalidade das leis e a sua questionação à ideia de existência de uma livre vontade de Deus. Então há leis universais num universo de livre vontade divina, fora dessa vontade?

Eu por mim ficaria ali a ouvir discutir este tema durante dias, com Frei Guilherme, com Umberto Eco ou com quem quer que me deixasse.

Aplaudimos de pé e gritamos: Bravo!

sábado, fevereiro 16, 2008

Quem semeia ventos...

E muito fácil sermos simpáticos quando as pessoas são simpáticas para nós. É muito fácil sermos gentis para pessoas que não precisam de nós, ou por serem saudáveis, ou de personalidade vigorosa, ou quando são novos, ou financeiramente autónomos. É muito fácil gostar de quem gosta de nós e nesse gostar não nos inoportuna e abre caminho para nós passarmos e os saudarmos de fugida em direcção a qualquer coisa que teremos muito importante para fazer.

Um dia apercebemo-nos que não somos tão amados, ou tão brilhantes ou tão bondosos ou tão inteligentes, ou tão jovens e bonitos quanto pensávamos ser. E que enquanto essa consciência de nós se ia instalando os que estavam à nossa beira iam descobrindo também as suas falhas: na perda de faculdades mentais e físicas, na personalidade que azedava com o passar dos anos, com a perda de familiares, com a crescente incapacidade de decisão, com a vida real a ser mais curta que as expectativas, com a incompetência de gerir as suas vidas financeiras, com a decrepitude das relações, com a sua discordância sobre o sentido do destino. E então começam a reclamar a atenção para eles, a mostrar as suas chagas, a lamuriarem-se, a dizerem-nos que existem apesar das perdas e que um dia existiremos como eles também numa espécie de perda, a fazerem-nos parar com as suas incoveniências, a lembrarem-nos outra ordem para além da que ficcionamos diariamente dentro de um corpo saudável que exalta a força e a segurança de quem sabe para onde vai.

E então, nessa nossa (in) capacidade para os atendermos, sem descurar o nosso conhecimento das suas vidas, mesmo quando as sabemos também elas entregues à ideia de uma juventude eterna e de uma ilusão de perene existência num estado sem necessidade, é que podemos testar quão simpáticos ou bondosos ou amáveis somos de facto. Paramos e atendemos às carências dos parentes idosos ou dos mais enfraquecidos ou daqueles menos capazes de dar rumo à sua existência, ou seguimos a pensar que a eles se deve a sua situação e que a nós nada nos é devido? Reclamamos responsabilização ou estamos disponíveis? Como equilibrar interesses? E onde se traça a fronteira?



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O senhor primeiro-ministro não gosta de se ver ao espelho que cada vez mais gente lhe mostra na vida pública.
O pior é sempre quando começam a questionar as razões. Aí é que se vê quem é simpático, ou bondoso, ou, no caso do governante em apreço, quem tem estofo de democrático.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

o discurso e os seus efeitos: o efeito tambor

"Nothing in this country has ever happened except somebody, somewhere, was willing to hope."

Repare-se o que era sermos americanos e ouvirmos isto. São frases épicas, de encher o peito. Talvez a senadora Hillary Clinton tenha dos melhores projectos sociais para a américa das últimas décadas, talvez o senador McCain pudesse apaziguar os americanos entre o seu ímpeto para polícias no mundo e aquele outro de serem meros cidadãos regidos por um pensamento utilitarista quanto ao tipo de finalidade presente quando há escolhas a realizar na vida pessoal e pública, mas nenhum deles tem a grandiloquência do senador Obama.
E essa qualidade atrai: chama-se capacidade retórica e não significa por si falta de ideias, ou fuga à verdade, pois é uma forma de passar ideias.
Perelman explica-o muito bem quando diz que a argumentação, tal como a nova retórica o compreendeu, não visa só a adesão intelectual por parte de todos os que a ouvem mas que ela visa incitar à acção. É um discurso que tem por intenção convencer ou persuadir.
O que o discurso de Obama aportará de técnica de lisonja do auditório, como os filosófos gregos nos alertariam a não descuidarmos, ou legítima e razoável forma de apresentar argumentos, como Obama quererá demonstrar, é algo que só a natureza das suas convições pessoais suportadas pela sua acção prática podem permitir analisar. E esta é a função dos eleitores americanos.
Pelo menos podem escolher entre candidatos interessantes e que fazem as pessoas acorrerem às urnas. Muitas novas teses surgirão deste novo reforço na participação democrática das pessoas nestas eleições. Muitas ideias feitas sobre o futuro cultura política a serem repensadas.
Pela forma como está a proceder com os seus discursos, a utilizar como ninguém essa sua qualidade de tribuno, o senador Obama desenvolve aquilo que me parece ser o efeito tambor numa marcha militar. Pôr toda a gente a seguir o ritmo. Ou atrás do ritmo. Algo mais sério.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Emoção e objectividade

A sensação que eu tenho é que todos queremos procurar os fundamentos, vá lá, os critérios que nos permitem saber porque escolhemos o que escolhemos quando o escolhemos.

Mas não, dizem-me, esse é o teu vício profissional. É o erro de tomares o singular pelo universal, a palavra individual pela acção geral. A maioria das pessoas quer lá saber dos critérios que orientam as suas escolhas, a maior parte limita-se a conseguir sobreviver, procurando ter com que comer, onde dormir e com quem procriar.

E será a procura desses fundamentos uma actividade estéril? O contrário dessa procura será mais verdadeira e respeitará mais as coisas como elas são? É como são as coisas como elas são? Quem está preparado para dizer como elas são? Os que procuram saber os critérios que as condiciona? Os que se limitam a viver respirando o tempo com as regras que as circunstâncias lhes dão?

Admito que a liberdade promova a confusão, que exija uma personalidade mais estruturada para não se despenhar em ansiedade, que a autonomia pode ser dolorosa ao empurrar para a solidão das posições e dos sentimentos e ao provocar a ruptura com o grupo. Não me admira que mulheres ilustradas queiram no mundo voltar à ideia de uma sociedade orientada por ordens superiores à dos seus desejos e vontades.

O meu filho diz algumas vezes quando instado a fazer escolhas e a responsabilizar-se por elas: "Não sei, escolhe tu." É ainda uma criança, mas já compreendeu como é mais fácil, ainda que possa ser aborrecido, escudar-se na decisão dos outros. Evita a inquietação interna.
As mais cínicas dirão: "É homem, há-se sempre ter a fama de tomar decisões e dá-las a tomar realmente para as mulheres."

Escolhe tu, decide tu, deixa-me na minha paz, ou na minha preguiça ou na minha existência física: expiro, inspiro, expiro, inspiro. E o que isto, mesmo involuntário, já dá de trabalho. Dá tudo um grande cansaço.

Mulheres ilustradas querem pois voltar a usar o lenço, como em épocas antigas. Veja-se o que acontece na Turquia. E com o lenço a cobrir a cabeça vêm as regras de relacionamento social que se juntam ao lenço. Não ter que escolher um homem com quem casar, não ter que escolher uma profissão para se sustentar e uma casa onde viver sozinha, e uma crença ou não crença religiosa a transmitir aos filhos, decidir a cor de um carro, ou se faz aquela viagem ou não, e escolher um partido ou uma ideologia contra a ordem tradicionalmente estabelecida e que possa romper com ela. É muita perturbação.

As minhas amigas que vivem sozinhas mais ou menos a contra gosto dizem-me: "Vá, já que tens opinião para tudo, diz-me lá porque há tantas pessoas solteiras, homens e mulheres, que não se encontram, ou porque não encontramos ninguém que valha a pena conhecer?

Eu respondo sempre, pragmática: porque os nossos pais e mais tarde nós mesmos descuramos esse facto simples que os pais deles conheciam muito bem, do povo às elites sociais e intelectuais, e que é o de terem que providenciar frequentemente encontros entre pessoas que queiram relacionar-se. Havia bailes sem fim por esse país fora, ou não havia? Não há outra grande explicação para que seja tão grande o número de pessoas que gostavam de conhecer outras e não o conseguem, senão o facto de não estarem a ser realizados o número suficiente de encontros sociais que de forma continua, generalisada e sem pressões, a não ser as de um qualquer outro encontro social, se frequente. Vão lá ainda às aldeias e vejam o número de relacionamentos. Ninguém os diz felizes. Di-los relacionados. Sim, está bem, mas é uma questão diferente. Adiante.

As pessoas ficaram entregues às suas próprias competências sociais que assentam na rede de amigos e familiares. Mas a competência das pessoas nessa área é muitas vezes nula. E as redes são cada vez mais alargadas mas também com laços mais frouxos entre si.
Comprendo por isso muito bem, posso rir-me, mas comprendo aquela avó que perguntou aos seus filhos, meus amigos, quando eles compraram uma casa de férias numa pequena aldeia quase sem jovens: "E com quem é que os meus netos se vão relacionar neste ermo, já pensaram?"

Eu que tive na minha adolescência uma "condessa de Ségur" como catequista, vi como ela procedia com os mais velhos do grupo, incentivava ao convívio frequente, organizando encontros, seminários e festas, sempre como se fossem casuais, mas com o olho vigilante de quem tece um tapete de várias cores. Ninguém se apercebia da intenção, ou se de facto se apercebiam não se mostravam desagradados, e no entanto ela sentia ser sua essa obrigação social.

Digo aos meus alunos:"Reparem na segurança que dá serem os outros a escolher por nós ... até o nosso par." Reacção generalizada de repúdio. Sorrio. É bom senti-los com a ideia interiorizada de responsabilidade pessoal, sem querem paternalismos. É bom. Mas vai doer. E será mais difícil. Digam-lhes isso e preparem-nos para isso. Não os enganem. E seria bom que depois não andássemos à procura de razões para a solidão, que passam, em primeiro lugar, pela solidão em que se está e da qual dificilmente se conseguirá sair sozinho, e só depois virão as outras razões pessoais de cada um. Mas isto também deriva de não sabermos que valores promover, ou de como conjugar o respeito absoluto pela liberdade individual e os interesses do grupo.

As meninas turcas querem a segurança da tribo. Sacrificam a sua individualidade à coesão social por uma ideia que é a de nação turca não laica. Eu arrepio-me com essa escolha. Mas sei que escolher o contrário disso também não é motivo de felicidade individual por si só. O que haverá a pesar é o resultado do maior bem público que se pode obter com cada um dos modelos e tendo em conta a posição livre de todos os interessados. A liberdade, sempre a liberdade como critério. Até para se ser infeliz é doce a liberdade. Para quem é.

Inspiro, expiro. Ideia para a sociedade/sentir do indivíduo.
Mónades, milhares de mónades. Gosto de conceito pitagórico e mais tarde leibniziano.
O problema é que nós não somos mónades: porque somos tudo menos matéria simples.

"Não, não, não. Tu é que dizes que não são matérias simples." Vício profissional.

Mais vale tarde do que nunca.

"Mundo: Steven Spielberg abandona organização dos Jogos Olímpicos de Pequim em protesto contra situação em Darfur".

Spielberg levou o seu tempo a compreender como devia agir, mesmo assim menos tempo que muitos outros líderes das diferentes áreas no mundo que continuam a contar os cobres e a apertar a mão ao amigo do governo chinês.

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

A mentira das criaturas

Ouvi uma vez um filósofo francês dizer que a mentira era um sinal de liberdade no discurso humano. Não sei se era isto que ele queria dizer. Às vezes dizemos uma coisa e as pessoas percebem outra completamente diferente. Às vezes ouvimos algo e estamos completamente de acordo e alguém nos demonstra que esse algo não foi dito bem assim ou que não está tudo dito, e concordamos também. É complicado. Os juízes devem pensar o mesmo. Agora vem alguém perante eles e defende uma tese para um tal de comportamento a ser avaliado, vem outro e defende a tese contrária sendo igualmente credível e igualmente passível de ser aceite. E o juíz deve pensar: não há como deixar o processo perscrever ou coisa assim? Não sei. Estou a inventar. Eu acho que era o que faria: "Ora aqui estão dois argumentos perfeitamente fundamentados na letra e com poucos dados para os podermos contrapor e escolher um deles. Arquive-se que isto é muita filosofia."

Inventamos todos a vida dos outros. E ás vezes estamos profundamente convictos que não estamos a inventar a nossa. E que por isso só nós podemos falar dela e ter a última palavra contra a dos outros. E às vezes é verdade.


Não consigo ver nas invenções discursivas deste primeiro-ministro e no seu ministério da educação, na sua despudorada forma de inventarem a realidade que mais lhes convém para justificar as suas decisões, nenhum resto de razoabilidade discursiva. E só me apetece repetir: os homens mentem, os homens mentem, os homens mentem e ainda se mostram como mártires da verdade. E quando o fazem não me parece que estejam a trazer liberdade à sua acção discursiva no mundo, ou à sociedade, mas antes o manto da calúnia por todos sobre os quais mentem.
Mas ele já mentiu antes, porque incomodar-me tanto quando ele diz de forma tão convincente :"Há trinta anos que os professores não são avaliados"? Mas não há outros assuntos mais importantes para o país do que aqueles que dizem respeito aos professores? Haverá, no presente haverá.

Vinha a ouvir na rádio Europa-Lisboa alguém a falar sobre um autor e sobre um livro dos quais nunca antes ouvira nada. É um autor suiço/alemão, editado na pela Relógio d`Água. É Robert Walser. O livro intitula-se Jakob von Gunten - Um Diário. E as palavras que ouvi ler colavam-se à realidade do nosso tempo presente, e à diluição de alguns valores sociais que de forma deliberada e, ao mesmo tempo, com tanta possibilidade de produzir efeitos perversos, se vão propagandeando. Quando descobrir a passagem do livro que foi lida deixou-a registada.
O livro foi tão bem apresentado! As selecções de texto tão bem escolhidas!

Jakob van Gunten: um diário. Lisboa: Relógio d´Água, 2005.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Como estás?

"- Como estás?
explico que não estou redondo nem quadrado. Neste momento acho-me mais uma espécie de losango.
- Estou losango
quem interroga a olhar para mim sem entender:
- Losango?
e eu
- Sim, losango, nunca te sentiste losango?
Nunca se devem ter sentido losangos. Há alturas em que me acontece pensar que as pessoas são esquisitas mas deve ser problema meu. Aposto o que quiserem que é problema meu. "

António Lobo Antunes, O homem que se sentia losango

Crise 3

Uma pessoa para ser inteiramente fiel consigo própria devia deixar de escrever sempre que sente quando outro alguém escreve aquilo que de alguma forma fecha o sentido do universo. E esse fechar do ciclo pode durar quanto tempo no tempo?

Para ser fiel comigo própria eu não devia escrever mais depois de ler certos textos que me deixam "o coração num pingo". Acontece, por exemplo, com os textos de Lobo Antunes na revista Visão. Há ali uma escrita como eu nunca conheci em Portugal. Eu falo de uma escrita sobre a verdade numa vida, porque não tenho outras palavras para a definir. É o melhor que eu tenho para dizer.
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Os textos do escritor são como pedaços de gelo que agarramos com as mãos nuas e que continuamos a fixar mesmo quando a dor nos trespassa a pele, a carne e se aloja nos ossos até tornar inertes e insensíveis os dedos. Sabemos racionalmente que não podemos ficar com o gelo muito tempo nas mãos, e no entanto adiamos até ao limite a perda desse sentir, porque sabemos que de alguma forma o continuarmos a preocupar-nos com outras coisas para além daquilo que é a dor de ter pedaços de gelo nas mãos é perseguir num exercício menor na vida.
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E no entanto...continuamos à procura de razões. Não sou psicanalista por isso não vou dizer que procuramos razões para saber a razão porque não somos amados sem que esse amor precise de explicações ou razões para existir, como Lobo Antunes diz ser o que todos nós desejamos.
Procurar razões é o que faz o indivíduo que pensa, como o ensinaram os métodos e as teorias dos filósofos desde a antiguidade.
E a pessoa embica para a questão das razões dos acontecimentos presentes, e pensa nas razões que levam os timorenses a poderem temer a intervenção em cada vez maior número das forças armadas e da polícia australiana. Eu também me interrogo sobre as consequências desse ascendente. Mal por mal, eu se fosse timorense preferia um maior número de contingente do exército português. A história recente de Portugal prova a nossa capacidade de intervir exclusivamente nas questões militares sem nos imiscuirmos nas instituições de governo: não sei se é mesmo uma tendência da política externa portuguesa, orientada de forma inequívoca nesse sentido, ou se é consequência do pouco poder político real. Espero que seja a primeira das justificações a explicar a boa prática.
Também embiquei para o aplauso do que ontem disse o Prof. António Manuel Hespanha, quando falou de valores, e do que a nossa política actual fez com alguns deles como os de: bem público, serviço público, ética da responsabilidade, compromisso, liberdade e regulação. Ainda que fique sempre por explicar a questão dos critérios para avaliar as aplicaçãos dos valores. Ficamos sem saber se isso pertence à Assembleia da República desenvolver, à sociedade enquanto manifestação de uma tradição cultural, a Deus, à escola, à consciência de cada um, à sensibilidade pessoal ou ao estado nacional ou ao estado transnacional?
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Habitualmente de acordo com as posições do Prof. Adelino Maltez, não consegui no entanto fazê-lo a propósito da sua ideia de que as investigações sobre a vida passada do primeiro-ministro vão numa linha de imprensa (leia-se uma determinada elite) que se sente incomodada com a vinda do governante do Portugal interior. Julgo que são explicações infelizes. Se essa linha de procedimento fosse verdadeiro tinha funcionado logo na campanha. Não é por as pessoas serem oriundas da província, ou serem mulheres, ou serem negras ou qualquer outra característica dos diferente dos que por regra de maioria ocupam lugares de poder que são escrutinados, ou devem ser escrutinados. Que o não façam habitualmente é outra coisa, mas que um primeiro-ministro diga que isso é mau jornalismo é algo que não lhe compete oficialmente avaliar, só precisa de dizer se os factos estão correctos ou incorrectos.
Não foi por ser da magnífica Beira Interior que o nosso muito jovem, em termo políticos, primeiro-ministro teve o apoio da imensa maioria dos povo português, e não será por ser oriundo dessa região que a poderá perder nas próximas eleições. Há que não arranjar subterfúgios com a origem, ou com o género, para fugir à avaliação das nossas acções públicas e escamotear as nossas debilidades. É a democracia.
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Em total desnorte de valores continua o Ministério da Educação. A americanização do nosso sistema de educação só parará em que patamar? Agora a reforma a todo o gás chega ao segundo ciclo (antigo ciclo preparatório). Tudo em velocidade cruzeiro. É preciso é fazer reformas, não é? Ainda vamos todos saber de que mal é feito o nosso desejo de reformar contra tudo e todos e em nome de ideias importados de sistemas eles próprios em colapso. Mas quando mudarem os principais dirigintes principais internacionais e eles começarem a ter outro discurso haverá que na lusa pátria os queira logo seguir e venha reformar as reformas, pois ainda um dia haveremos deixar de ser portugueses e europeus e passar a ser cidadãos do país que nessa década estiver na moda: sei lá, finlandeses que vêm do frio (embora a moda da Finlândia com o caso do aluno que assassinou alguns dos seus colegas tivesse ficado um bocadinho menos luminosa).
E no entanto... eu escrevo: o tempo passa. Sim, e depois? Depois o tempo passa e passando obriga-nos a passar nele. Às vezes dá dó, outro regozijo, às vezes indiferença, outra resistência. Somos tão afortunados. E no entanto...ele há razões, que as há.

domingo, fevereiro 10, 2008

Crise 2

"Como pensa que foram tratados os soldados que voltaram da guerra colonial?, pergunta Lemmens. Lobo Antunes responde que a única coisa que qualquer ser humano deseja é ser amado sem explicações, amado de um amor que não precisa de razões para existir."
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in Expresso, revista actual, p.31, descrito por Tiago Rodrigues

Crise 1

Dizem que as crises, pessoais ou sociais, são criativas. Mostram-me quadros pintados que nunca o teriam sido não fora a vivência do artista em períodos políticos de ditadura. E decifram, com alegria, uma linguagem velada de liberdade manifestada num meio de opressão.
Será verdadeira a ideia, para os que a fizerem verdadeira com o seu exemplo. Mas será uma ideia pedagógica?

Os deveres dos aliados

"NATO encerra reunião Lituânia com críticas ao governo afegão"

Enquanto os países tiverem um discurso de apoio às decisões e intervenções multilaterais para depois na prática procederem à perseguição de interesses de forma unilateral será difícil fazer com que as populações e alguns dos seus dirigentes acreditem na ideia de dividir sacrifícios e de prestar assistência. O jogo dos interesses, da tal política real, cai nisto: nas políticas de pressão ou capacidade de influência de individualidades. O jogo dos princípios, se conhecidas as regras, e aceites as mesmas, teria com certeza um outro nível de participação e exigiria um outro tipo de comportamentos. Mas não, pretende-se actuar de maneira diferente para o que se diz ser uma realidade diferente. Depois ficam muito surpreendidos com as reacções dos autóctones que escapam ao programa desejado.

O problema é que as sociedades não reconhecem os critérios de intervenção armada como sendo rigorosamente universais e estáveis, nem reconhecem autoridade à maioria dos dirigentes que falam em nome daqueles. Bom, pelo menos não o fazem de forma crítica, porque em situação de perigo iminente essa adesão à ideia de necessidade de uma defesa imediata e mais agressiva poderia facilmente vir a ser aceite por uma opinião pública inundada de notícias pró conflito.
Mas como estabelecer critérios que sejam aceitáveis por todos os envolvidos e que exijam um compromisso escrupuloso das suas ideias directrizes? Como transformar os interesses de cada nação, diferentes entre si, pelas histórias, desejos e vontade de dominar distintos, numa acção conjunta que tenha por primeiro objectivo o interesse geral?

Ele há imagens culturais com muita força

Hoje no teatro, no belíssimo teatro Tivoli, o Peter Pan pôs toda a gente em pé e a cantar que acreditava em fadas, e cada um saberá do seu próprio convencimento acerca do que cantava, mas todos, miúdos e graúdos, cantaram pela Sininho.

sábado, fevereiro 09, 2008

Três presidentes prováveis 2

O Website de McCain mostra-o numa fotografia em primeiro plano em pose de líder de audiências como apresentador de um talk show. Homem de sorriso aberto, simpático, em poses informais, dois braços abertos com polegares levantados a festejar e a fechar um círculo com os seus apoiantes. Não esquece obviamente de fazer uma chamada especial de atenção para a sua história de herói militar. Qualidade que rende dividendos políticos desde a antiguidade, o que não impediu muitos heróis de serem mortos ou maltratados pela sua cidade/sociedade, o filósofo Sócrates que o diga.

Obama tem uma página bem documentada da campanha e faz render bem as suas recentes vitórias e as suas conquistas procurando criar o efeito "onda de vitória". Ele quer convencer os indecisos e que tradicionalmente tendem a votar no candidato que mais hipótese tenha de ganhar (diz a teoria), a juntarem-se a esta equipa ganhadora considerando a hipótese mais que provável. Enfim, discurso de ocasião. A página tem bastante informação e estende-se por vários ecrãs. Ao lado de um símbolo que tem estilizadas as cores da bandeira americanas o senador apresenta-se a olhar para o "longe" rodando a cabeça ligeiramente sobre o ombro direito. A boca entreaberta não lhe dá um ar sonhador, pois o sobrolho ligeiramente franzido e que lhe fez semicerrar os olhos atribui-lhe a qualidade da atenção para algo que se passa ao longe e sobre a qual ele parece ir falar a seguir.
A página está bem estruturada e permite um fácil acesso à informação que a sua equipa considerou mais pertinente. Além disso muda frequentemente a imagem e a notícia a que quer dar destaque. É uma página muitíssimo dinâmica em termos de apresentação. E tem uma frase cheia de significado democrático, que sabe bem ouvir dizer: "Eu peço-lhe que acredite. Não apenas na minha competência para transformar realmente as coisas a partir de Washington...eu peço-lhe que acredite nas suas."

A página tem para mim um defeito: não permite que saíamos dela através do comando "retroceder". Detesto esta técnica, lembra-me logo as estratégias da publicidade manhosa, spam, que nos aparece às vezes no computador.

Clinton tem uma página com fotografia em pose presidencial, confiante sem ser confiada (não se foi primeira-dama em vão). Tudo nela muito em ordem. O cabelo, a maquilhagem, a roupa (ainda que pouco se veja porque a candidata é fotografada do pescoço para cima), o sorriso e um olhar amigável. As cores são as da bandeira, como todos os outros candidatos o fizeram, e sob o seu nome próprio (é curioso que se escolha um nome próprio para se propor à presidência, obviamente uma estratégia discursiva de fazer ver o que é obvio, ela não é mais um Clinton a candidatar-se, é ela, Hillary que até é casada com um antigo presidente americano.) uma linha de bandeira.

Na hora em que estive ligada à sua página o destaque maior era dado ao dinheiro que a candidata já tinha angariado e uma proposta para que a ajudassem a subir esse número. Uma página muito pragmática, orientada para as pessoas que a queiram auxiliar com o seu trabalho na campanha ou venham a financiá-la. Menos política e mais dinamizadora de campanha. Uma página menos idealista, com menos estilo pessoal, que a de Obama, mais formal e mais precisa que a de McCain.

Três presidentes prováveis

De todas as pessoas que leio ou ouço nos meios de comunicação que comentam as eleições americanas em Portugal, a única a quem dou total assentimento aos seus argumentos e concordância total com a perspectiva de análise é a José Cutileiro. Reparo no artigo deste sábado no Expresso “Terça-feira gorda nos Estados Unidos” e deixo-me cativar por uma escrita que destaca o fenómeno da participação elevada dos americanos nestas primárias (lá se vai a teoria política sobre o fenómeno de despolitização crescente das pessoas nas sociedades contemporâneas e a sua consequência num sempre crescente número de abstenções) e fala da Hillary Clinton como a senadora de Nova Iorque, e de Barack Obama como senador do Illinois e de John MacCain o senador do Arizona. Fala do candidato republicano e dos candidatos democráticos, não fala da mulher ou do negro ou do herói do Vietnam. Fala de senadores, de pessoas políticas com projectos para a América, fala e bem dessa sociedade que durante anos, e porque os Media lhe pediram, se entregou nas mãos de um líder e de um pensamento político que levou os Estados Unidos, e o mundo por arrasto, para mais uma encruzilhada ideológica perigosa imbuídos da crença que essa era a melhor estratégia para a nação e que agora, de forma empenhada, parece querer demonstrar com o número da sua participação nas eleições a bater recordes, que está atenta, que quer decidir e que quer escolher, porque despertou do torpor idiota que os terá adormecido embalados pela ideia de “quem não está por mim, está contra mim”.

A sociedade americana não está a escolher o negro ou a mulher ou o herói, está a escolher políticos, senadores com obra feita, está a seleccionar ideias, está a dizer o que prefere numa pessoa para o cargo de presidente. Não é o sexo ou a cor, ou por si um passado militarmente glorioso que são eleitos. Isto parece-me uma análise da sociedade do século passado, do tipo: “Olhem, incrível, um negro, ou uma mulher a poderem ocupar um cargo da natureza a que se encontram a concorrer!” É retirar à pessoa o que ela ganhou com as conquistas ideológicas promovidas e divulgadas pelas declarações dos direitos do homem. Não há que reparar no que é óbvio. São aquelas pessoas, com a experiência que acumularam, com o carisma que possuem, com o dinheiro que conseguiram angariar para as suas campanhas, com os apoios que conseguem obter, com as ideias que defendem e o comportamento que manifestarem, que vão ganhar. Não me parece que seja por serem ou mulheres ou negros ou só homens brancos a disputarem as eleições o que leva as pessoas às urnas numa américa do século XXI, mas sim o que essas pessoas têm a oferecer de diferente, ou a propor na governação do país, por serem candidatos credíveis numa América que tinha muitos candidatos por onde escolher.
Ali não há imposições dinásticas ou golpes de Estado, não há candidaturas únicas ou auto consagração. Existem propostas diferentes com pessoas diferentes. É por isso que se compreende que a mais mediática das mulheres americanas, Oprah, venha dizer que escolheu apoiar Obama por concordar com as suas ideias mais do que com as de Clinton, e isso sem a impedir de continuar a ter um papel fundamental na promoção dos direitos da mulher e de contribuir no mundo para impulsionar a conquista dos lugares de poder pelas mulheres. Mas impulsionar candidaturas de mulheres não equivale a assumir que só por ser mulher se deva deixa de poder estar em desacordo com o que ela diz ou faz. Dizer que as mulheres devem candidatar-se em número correspondente ao seu lugar na sociedade, e incentivar a que esse fenómeno se generalize, não é idêntico a garantir um lugar de poder só por ser mulher. O mesmo para a cor. Isso seria repetir o mesmo padrão de selecção dos últimos séculos e que em muitas sociedades continua a ser uma realidade: é homem, é branco e tem dinheiro? Então manda porque pode.




Paul Haggis, li no jornal Público de ontem, está a levantar com o seu filme “No Vale de Elah” (que ainda não vi) uma questão fundamental para o futuro dos americanos: o que pensam vocês que vai acontecer com os soldados que estão a vir do Iraque? Esta questão vai mais longe do que a mera constatação de uma realidade como é a de que esses soldados não estão a ser devidamente acompanhados pelo Exército no seu regresso. Isto é mau. Mas pior parece-me ser o que daqui possa advir no que a uma ordem interna dos Estado Unidos diz respeito. Dir-me-ão que as sociedades têm uma grande capacidade de resistência e de integração das pessoas. Que os soldados e as suas histórias serão devidamente escalpelizados pela indústria cinematográfica o que dará à imensa maioria um meio de sublimar a sua dor. Talvez haja uma pequena minoria a soçobrar, e que sendo lamentável não será inibidor da estrutura social tal como ela se conhece, mas eu duvido que estes milhares de soldados a chegarem, e tendo os meios de comunicação digitais ao seu dispor como nenhum outro soldado da história o teve, não tragam consigo uma mudança social, nos modelos sociais e no tipo de projectos políticos futuros. Infelizmente não sei prever em que direcção essa acção ou pensamento se encaminhará. Sou péssima a fazer previsões. Não sei se daqui sairá um maior reforço à Carta das Nações Unidas ou um outro documento internacional sobre conflitos, ou se, pelo contrário, se procurará fechar mais o país sobre si próprio e os seus problemas internos, suspendendo, ou invertendo as políticas externas mais agressivas. Seja como for, e como Cutileiro o destaca, o que se pode dizer é que, por agora, “os projectos de qualquer dos três presidentes prováveis em Janeiro de 2009 acabarão com os lados mais ofensivos, iníquos e ruinosos da política da administração actual e as relações dos Estados unidos com a Europa Melhorarão”.
Espero que a prática confirme esta hipótese.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Agitação de águas à superfície

Houve um tempo em que o programa “Choque ideológico” que passava diariamente na RTPN contava com um filósofo, Paulo Tunhas. Nos dias em que Paulo Tunhas debatia os temas com Paulo Varela Gomes, pelo menos nos dias em que o ouvi, Tunhas, de forma lacónica, e não raras as vezes, dizia nada ter para dizer porque sobre o assunto não tinha opinião. Ao constrangimento que eu própria como espectadora comecei a sentir pela disposição evidenciada foi sucedendo o sentimento de surpresa que se transformou, com o tempo, em convicto assombro. O homem nada tinha para dizer, logo não dizia. É de filósofo. Foi de lá corrido rapidamente, ou deu-se a si próprio como corrido, porque afinal o programa alimentava-se da discussão entre pares e não de uma demonstração da exigência de um tempo longo de ponderabilidade intelectual. Eu dava comigo a pensar, parodiando Nani Moretti no seu filme Abril: “Ó homem diz qualquer coisa filosófica. Diz qualquer coisa, vá diz.”

Há muito tempo que queria escrever sobre este episódio. Não sei porque o faço hoje aqui. Podia dizer que é porque ando para falar de um conjunto de temas para os quais não encontro palavras. Não é que eu me queira comparar em atitude à de Tunhas, não, porque eu não sou filósofa e por isso opinião lá isso eu tenho sempre, tal como o cãozinho de Pavlov salivava quando ouvia a campainha eu boto faladora quando oiço a palavra opinião, a questão está em que não tenho é palavras. Ou disposição para me sentar e encontrar as palavras. Para falar do conceito de crise, ou de ética, ou de deontologia profissional, ou de análise política de eleições a partir da questão do género, ou das pessoas da minha pátria que ciciam, ou das outras que dizem bem alto o que deve ser dito, mas que depois da excitação inicial que as suas palavras provocam são tomadas de uma reserva cúmplice para com uma ideia de estabilidade social que ninguém sabe o que é, nem sob que virtudes públicas deve ser fundada. Agitação de águas à superfície. Como seria interessante saber o que dessas correntes é arrastado para o fundo e cria lastro cultural.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Plataforma democrática

Hoje descobri este espaço de participação política: uma página belga com uma equipa editorial que faz as perguntas e medeia as respostas no La Libbre.be.
Atente-se no destaque dado às eleições americanas e o nível de participação dos internautas por comparação ao interesse dos mesmos sobre a questão relativa ao futuro da União Europeia em 2008. Os números dos participantes no debate não enganam. O interesse está no continente a Noroeste.

Na mesma página pode encontra-se este texto muitíssimo interessante de Jean-Jacques Delfour intitulado Les pousse-au-jouir du président Sarkozy , pese embora a referência aqui deixada seja a de outra página electrónica.
Aqui fica o texto de análise à personalidade do presidente francês o mesmo que se comporta como um adolescente fascinado com o exibicionismo que o dinheiro e o estatuto social dos papás lhe dá. O sublinhado é meu: "Les discours du président Sarkozy exaltent le travail, l’effort et l’autorité tandis que ses pratiques glorifient l’argent, la jouissance et le narcissisme. Étrange contradiction. Ses déclarations renvoient à des idéaux réfléchis, à des missions universelles ainsi qu’à des devoirs moraux ; mais ses actes semblent pulsionnels, particuliers et égoïstes. Curieuse incohérence. En réalité, la jouissance est la vérité du discours de l’effort, tout comme la tyrannie est la vérité du programme présidentiel.
Pendant des mois, le même slogan ressassé : « travaillez plus pour gagner plus ». Un éloge bienvenu du travail ? Bien plutôt l’annonce benoîte d’une adoration absolue pour l’argent (confirmée expressis verbis autant que de facto : yacht, jet privé, etc. – où l’on a vu que le président jouit surtout de l’argent des autres). Le but général : gagner de l’argent, à n’importe quel prix. Traduction : rien de moins qu’un esclavage, subjectif pour le riche, objectif pour le pauvre. Toujours plus d’argent, donc toujours plus de servitude, supposée vite oubliée devant la jouissance totale procurée par l’argent.
La tyrannie de l’activité (ou le simulacre de l’action) : le président ressemble à un enfant pathologiquement hyperactif, qui dissout son angoisse dans une agitation stérile et acéphale. Inquiet de l’amour qu’on lui porte, souffrant d’un complexe multiforme, il se dépense en efforts permanents de séduction. Séduire les électeurs des autres (Front National et centre droit), les militants des autres (les transfuges du Parti Socialiste), les femmes des autres. Un enfant œdipien en somme, mais qui est enfin parvenu à plier la réalité à l’empire de ses désirs. C’est pourquoi il ne peut s’empêche de s’exhiber : sa jouissance ne consiste pas seulement à posséder mais aussi à susciter l’envie. Je jouis, à la galerie, donc je suis. La morale est désormais désuète, la bienveillance politique caduque : reste la jouissance, le plaisir d’être adulé, obéi, admiré, envié. Triste tyrannie du désir insatiable d’être aimé.
Le fondamentalisme religieux personnel élevé au rang de politique de la République
: la foi catholique, intense sentiment intérieur, source d’une jouissance rendue supérieure par sa référence présumée à la transcendance et à l’infini (les leurres classiques de la folie mystique), doit donc devenir une règle publique. Jouissance de détourner le lourd appareil de l’État au profit de ses petites croyances personnelles. Plaisir de poser son séant sur la Constitution (pied de nez à de Gaulle). Tyrannie de la jouissance religieuse (éprouvée grâce à l’idée d’une valeur suprême, d’une vocation totalement noble – en vérité un héroïsme de bénitier).
Immédiatisme, hédonisme, activité morcelée et éruptive, désir d’être apothéosé, culte de la jouissance sans limite. Tel est le programme inconscient du président Sarkozy. D’où une fâcheuse proximité pulsionnelle entre le raptus du roi de la rupture, la jouissance onaniste et la délinquance ; le voleur en effet veut lui aussi une satisfaction immédiate : pas de travail, pas d’attente, pas de négociation avec le réel. Jouir hic et nunc.
En cela, nulle rupture avec les présidences antérieures qui, cependant, s’exhibaient moins. Une sorte de honte caractérisait les corruptions du président Chirac et le président Mitterrand dissimulait ses prévarications – ce qui laissait encore fonctionner publiquement la norme de la justice et du droit. Le président Sarkozy se distingue d’eux par une telle exhibition de la jouissance qu’elle en acquiert un statut politique, effectivement renversant. À la subalternation juste de la pulsion au pouvoir politique, il substitue une subordination réelle du pouvoir à la pulsion. À promouvoir politiquement la jouissance, on établit la tyrannie.
Dès lors, le discours récurrent de l’autorité, l’éloge interminable de l’ordre, deviennent nécessaires. Il faut masquer l’anarchie pulsionnelle à la fois pour contenir sa propagation et en assurer l’existence au lieu seul du pouvoir. C’est pourquoi la demande sociale d’ordre et d’autorité, originairement suscitée par l’illimitation du capitalisme et par l’extension de l’anomie, est accrue précisément par l’hédonisme présidentiel public.
Plus le président affiche la tyrannie de ses pulsions, plus le « peuple » désire cette jouissance par procuration et, simultanément, s’effraie de l’inquiétante abolition des limites impliquée par cette jouissance. L’excitabilité sociale augmentant du seul fait du statut normatif du chef de l’État, l’attente de contentions répressives s’en trouvera automatiquement accrue. Ainsi, loin d’être mystérieusement concomitantes, l’exaltation de l’ordre et la promotion de la jouissance forment un unique système, où la jouissance du maître a pour condition la frustration pour (presque) tous les autres."

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

As reformas e o seu povo

Levámos o rapazinho a ver um desfile de Carnaval. O acto em si já era demonstrativo de um estado de espírito nosso que pressuponha que a participação no Carnaval passava antes de mais por um acto de contemplação, para usar um termo menos perverso e mais filosófico para nos descrever nesses momentos em que nos quedamos a olhar as acções dos outros, como se de fora viéssemos e aí quiséssemos ficar. Ficar a olhar o Carnaval…dos outros. Como se o ritual nos incluísse exclusivamente pelo acto de ficar a olhá-lo. Aconteceu na Nazaré. O rapazinho fixou, boquiaberto, os grandes tractores, os bonecos pintados, as roupas extravagantes, arregalou os olhos com a música estridente, marchou à passagem dos grupos que se movimentavam em rodas de cor. O rapazinho gostou de ver.
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A mãe e o pai do rapaz suspiraram, fizeram um sorriso triste um para o outro e encolheram os ombros, e o menino nem notou as reticências. O desfile…o desconforto com a situação, a incapacidade de nos ligarmos, de criarmos empatia com o acontecimento, a sensação de alheamento e de tristeza que perpassava por toda aquela audiência que mesmo assim se amontoava para ver passar os carros alegóricos.
No seu conjunto todos nós fazíamos uma mole cinzenta e preta, com agasalhos excessivos para o dia que apesar de tudo ia agradável. Uma multidão prevenida, pois não vá chover, não vá fazer frio à noitinha, não vá vir a nortada que o mar está ali a meia dúzia de metros a lembrar que é mais que a gente toda junta a olhar para os bonecos. Um Portugal de gente prevenida, de quem sabe que o diabo gosta de tecer as suas coisas.
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Sossegados a olhar, pardos na forma do corpo e tolhidos no movimento que não lhe deixam vislumbrar, ali estava o público. Passa o conjunto de um grupo todo gaiteiro em cima de um camião. Tocam para animar e pedem palmas ou gritos de incentivo e de entusiasmo, a multidão olha-os, reservada. Está circunspecta como em dia de procissão do Senhor dos Passos. Hoje é quarta-feira de cinzas mas nós todos já cá estivemos, ontem dia de Carnaval. Mesmo os que procuravam contrariar a multidão circundante, gingando as ancas e cantarolando as musiquitas. Mais unidos pela inércia do que pela participação festiva.
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Quem desfila finge que não vê os forasteiros que ali no passeio os vêm passar, por desfastio uns e outros a encenarem os seus papéis, mas olha, olha, como ali à frente já se acena e se sorri à família e aos amigos.
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Uns mais que outros, os grupos compõem a sua coreografia, para chamarem a si as atenções, quase sempre pífia: as atenções e as coreografias. Por comodismo, por falta de brio, de profissionalismo diria eu se não soubesse que muitas horas de trabalho amador ali se manifestam, sobretudo por falta de paixão e entrega. De dinheiro também, claro. Mas não é a falta de dinheiro que leva a que se amontoem casacos e latas de cerveja sobre os carros do corso, não é falta de dinheiro que faz com que os grupos se encostem aos molhos de três ou quatro, parados a conversar, a beber ou a fumar de cada vez que o cortejo pára, não é a falta de dinheiro que cobre a radical ausência de imaginação ou de loucura criativa, num pouquinho de atrevimento que fosse. Tudo quase previsível no desleixo das apresentações, na ausência de dinâmica de grupo.
Os tractores a desfilarem como se em manifestação de agricultores zangados com o ministro, não ajudavam, os carros mal decorados e com os geradores a produzirem um som mais alto que o da música, também não, os movimentos mal estudados e pior pensados dos grupos de baile, igualmente mau, tanto quanto a cadência do desfile a raiar o estado de sonolência. As roupitas da maioria dos desfilantes…bom não vou por aqui.
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Claro que também havia momentos de júbilo aqui ou ali. Um grupo grande de jovens raparigas adolescentes, animadas, alegres e cheias de graça, encantavam com os seus meneios, e perdoava-se-lhes até o inebriamento de cada uma por si própria e o esquecimento do seu serviço ao grupo. Pareciam uma nuvem e o efeito era engraçado.
Um outro grupo de mulheres mais maduras dançava ininterruptamente um samba suave, obedecendo à coreografia e criando uma execução de grupo agradável. Houve até um carro que desfilava a evocar o filme infantil Ratatui, bem conseguido nos adereços e com boa projecção para o exterior. Também não recorreram à ideia fácil de porem mulheres nuas a dançarem o samba. O que para muito homens deve ter resultado num prejuízo para a festa. Eu considerei o facto positivo. O que mais me impressionou no entanto foi ver três mães a desfilar levando consigo bebés pequenos. Uma delas sobretudo marchava levando ao colo uma pequenita adormecida, igualmente trajada com o mesmo rigor que a sua mãe. Comoveu-me. E isto num Carnaval que devia ser a celebração da loucura e da folia e eu vou logo emocionar-me com a mãe que leva a sua menina ao ombro enquanto procurava acompanhar as suas colegas a cantar e a dançar. Eu bem disse que tudo aquele sentimento me parecia mais próprio ao sentido numa procissão das velas. Mas havia ali uma grandeza numa linguagem popular e emocional que eu entendi. Foi assim.
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E os homens? Confesso que me pareceram todos patéticos, ou então sem espaço para se me imporem pelo que quer que fosse: pelas roupas ou pelas coreografias, pelo arrojo ou pela virilidade, pela diferença ou pela loucura. Quase sem história, não fosse eu recordar o desvelo e o carinho com que três ou quatro “comandantes” já de meia-idade trataram uma jovem “hospedeira” que um imberbe “comissário de bordo” arrastara pelo chão no decorrer de uma cabriolice mais estúpida do que engraçada.
Um dia brinquei de encenadora com As Bacantes, e li o que Eurípedes fez com os seus homens. Sei assim como eles se podem metamorfosear. E não os vislumbrei por ali. Mania minha.
- "Olha, agora traz para aqui Eurípedes... já cá faltava o apontamento erudito!"

Não sei se se sentia o distanciamento entre o público e os participantes no espectáculo. Eu sei que senti esse distanciamento. Mas isto de percepções valem o que cada sujeito quiser que elas valham.

Não há empatia a circular por ali, sentem os pais do menino, e no entanto não pode deixar de haver simpatia, talvez uma certa piedade pelo destino comum de que não gostamos, que não desejamos mas que de alguma forma reconhecemos. Conhecemos aquele cansaço, aquele ar mortiço, as cores debotadas dos cabelos e dos sobretudos, a gordura a mais de muitos corpos sem ânimo, a parolice de ficar a olhar a fraca festa de Carnaval dos outros, ou o desleixo de um desfilar sem brilho pela avenida abaixo e rua acima. Conhecemo-nos de outros Carnavais.


Saí de lá com mais um argumento para o facto de estar profundamente convencida que Portugal precisa de referendar rapidamente o regionalismo. Da primeira vez votei contra. Imaginei Portugal governado por milhares de homenzinhos como Alberto João (com a minha devida vénia aos milhares bem gastos em infra estruturas na Madeira) ou ao Pinto da Costa (com a minha vénia às vitórias do FCP). Votei contra. Parva. Imaginei ser preferível um país centralizado a ser governado por homenzinhos como Barroso, Santana ou Sócrates. Pelo menos, pensava eu, estes podem ser mais fiscalizados pela imprensa e pelo público. Parva. Como se não houvesse ou não pudesse haver imprensa regional igualmente com vontade, que o poder talvez seja mais débil, de ser tão fiscalizadora quanto a outra. Como se o povo de cada região não soubesse exigir mais de cada político liberto da desculpa do governo central ser um empecilho à política regional. Como se o povo português, que no seu conjunto parece apagadito, temeroso ou inerte, feio mesmo com as suas roupas sempre escuras, não fosse formado por indivíduos que se olhados na sua singularidade revelam forças: um carácter esforçado, empenhado, um brio em fazer bem assim entenda como, um espírito de sacrifício, uma vontade de cumprir metas, assim saiba para que lado elas ficam.
O que falta aos portugueses não é vontade de aceitar ou de fazer reformas, o que lhes falta, como sempre lhes faltou, foi quem lhas explicasse com respeito pelas suas opiniões e pelas suas experiências de vida. Faltou sempre quem amasse as multidões não pelos votos que delas pudesse receber mas pela ideia de democracia que só elas podem fazer evocar. Quem amasse a democracia, tanto quanto o povo em nome do qual se exerce o poder, amasse tanto a liberdade de cada indivíduo tanto como compreendesse esse amor inquestionável por um princípio. O resto são sevícias sociais. Não são reformas.
Um banho de loja e uma ida ao cabeleireiro também ajudava, não resolvia tudo, mais ajudava a dar mais cor ao pessoal enquanto espera que o desfile passe. Na Nazaré como na vida. Parolices, isto também, eu sei.